Uma das linhas de força das performances de Marcela Levi reside no modo como torna presentes e quase tangíveis os interstícios do corpo, esses buracos por onde o sentido escapa ou tende a escapar. Desde o trabalho Imagem (2002) Levi vem elaborando uma linguagem que tumultua a hierarquia entre corpo e objeto, incidindo sobre diversas dicotomias (dentro-fora, corpo-mente, ativo-passivo, afirmação-negação) que balizam nossa percepção. Surge daí um corpo fugidio, arisco, teimoso, mas, ao mesmo tempo, permeável aos objetos com os quais ele lida, um corpo que abandona a posição de totalidade e de completude e que só se manifesta ao se deixar transformar.

LAURA ERBERO: escritor francês Francis Ponge (1899 – 1988) propunha que a escrita, especialmente a do poema, fosse movida pela força de empuxo dos objetos. Ponge acreditava que para retirar-se da ciranda estéril do humanismo era preciso “se deixar puxar pelos objetos”. Para ele, não se tratava mais de organizar as coisas ao nosso redor para atingir uma harmonia, mas de se deixar desarranjar por elas. Você criou a expressão “subjetos” para designar o corpo transitivo que se deixa contaminar, poderia falar sobre ele?

MARCELA LEVI: Sim, é exatamente isso: “… se deixar puxar pelos objetos”. Quando estou trabalhando, penso em me “submeter” aos objetos e não apenas em manipulá-los, como se fossem algo sobre o qual tenho controle. Busco experimentá-los, um pouco como fazem as crianças. Gosto muito de observar as crianças se movendo, elas têm um estado de momento, ou seja, elas acessam um estado de atenção que se assemelha a certa intensidade dos animais. Diferentemente dos adultos, não estão atravessadas pelas noções de futuro ou passado, simplesmente estão lá, inteiramente instaladas no aqui e agora, assim como os animais, e disso surge uma presença completamente fascinante. Acho que as crianças não “fazem coisas”, elas se misturam ao que fazem, elas são o próprio ato. Cada passo é um passo e nada além disso, cada gesto fala do gesto em si. Nunca sei se elas estão jogando com os brinquedos ou se são os brinquedos que estão jogando com elas. É esse tipo de experiência que procuro ativar no meu trabalho com os objetos, uma terceira coisa que não é mais nem o meu corpo nem o objeto em sua autonomia, mas sim um corpo/objeto/sujeito imbricados. Foi dessa prática de trabalho que surgiu a palavra “subjetos”: objetos/sujeitos deslocados e desfuncionalizados.

LAURA ERBERO: seu primeiro solo intitulava-se Imagem, e o seu trabalho, de um modo geral, parece estar cada vez mais situado nessa fronteira tênue que separa (ou liga) a performance e as artes plásticas. Você poderia falar um pouco sobre a ideia de imagem que surge nesse processo? 

MARCELA LEVI: Sim, acho que sim. Construí a performance Imagem em colaboração com a fotógrafa carioca Claudia Garcia. Pensar um corpo não capturável, que se expõe em constante reorganização, foi o nosso ponto de partida. Estávamos interessadas em pensar a imagem como algo que não afirma, que não estabiliza. Queríamos falar de uma imagem/corpo vazada e borrada de sensações. Uma imagem precisa, mas de uma precisão cheia de ambiguidades.

LAURA ERBER: Há um humor muito particular nas suas performances que, no meu modo de perceber, além de ser mordaz, transmite uma forte sensação de desamparo. É um humor que sedistancia da facilidade e também da arrogância que muitas vezes caracteriza a ironia, pois, no seu trabalho, não se trata de denunciar ou de julgar algo que seja estrangeiro ao próprio corpo que vai se constituindo em cena. Talvez esse humor contribua para o “desfazimento” do corpo autárquico e autônomo, deixando surgir outras combinações de força entre a passividade e o excesso de estímulo (e controle), ao qual, por bem ou por mal, estamos todos submetidos. Mesmo quando seu trabalho sinaliza questões de um real exterior (a banalização da morte em In-Organic, por exemplo), é por dentro que opera, quero dizer, não vejo ali uma estratégia para induzir o espectador a uma tomada de posição imediata. E aí o humor se conecta com uma situação de inacabamento e deixa também o espectador num certo desamparo, de não saber como reagir internamente. Mais do que um modo de criticar, esse tipo de humor cria situações de crise. Como você vê essa relação entre humor e crise no seu trabalho?

MARCELA LEVI: Engraçado, sempre achei que faltava humor no meu trabalho… mas desamparo sim, percebo bem. Acho que tem relação com o fato de eu acreditar que somos seres solitários que se falam por uma aproximação que é feita de desvio. Mas vejo essa solidão com muito bons olhos, acho que é justamente essa impossibilidade de união que nos possibilita desejar e falar. Quando construí In-organic, estava interessada em falar, como você citou na sua pergunta, da banalização da morte. Mas não queria discursar sobre isso e nem apontar dedos pra ninguém. Queria uma fala-esboço, inacabada. Pensei, então, em me afundar no que eu estava falando, quero dizer, fazer daquela fala exterior algo íntimo.

LAURA ERBER: Em In-organic, havia já algo que se intensifica no Em Redor…, associações disjuntivas que interligam os fragmentos/momentos, sem preencher inteiramente as lacunas entre eles. Nesses buracos, o espectador pode experimentar um certo incômodo, mas também uma possibilidade de desfazer a linearidade, o modelo de um tempo sucessivo que tende a se impor sobre a cena. Essa disjunção não é sinônimo de “falta de unidade” e sugere a possibilidade de permuta. Como você encara essa “sintaxe temporal” do corpo em cena?

MARCELA LEVI: A minha matéria de trabalho é o corpo. Penso o corpo como uma zona estranha, ambígua e rugosa. Esse corpo faz (engendra) parte (de) uma situação específica que se desdobra num período (pré) determinado de tempo. Tento, ao articular essas situações, fazer algo que Francis Bacon disse: proporcionar emoções sem o tédio da comunicação.

LAURAERBER: De que modo o Em redor do buraco tudo é beira se relaciona com seus projetos anteriores? Como você vê essa passagem do solo para um duo em que os dois corpos nunca dialogam propriamente, mas habitam o mesmo espaço despedaçado e manuseiam objetos convulsivos, que ao longo da performance também se desfazem e mudam de sentido? 

MARCELA LEVI: Gostei muito da ideia de “espaço despedaçado e objetos convulsivos”, é isso mesmo! Um amigo (Volmir Cordeiro), que acompanhou os ensaios, disse que tinha a impressão, ao ver o trabalho, de que o que ele via em cena parecia ser uma parte de algo que ele não via. Gosto muito dessa ideia de dar a ver um apêndice do não visto. O não visto se tornando mais corpulento do que o visto. Durante o processo de criação trabalhei com o livro A conversa infinita do MauriceBlanchot. Entre muitas outras coisas desse livro que me ajudaram a pensar esse trabalho, Blanchot diz que a conversa está no espaço vazio que irrompe entre uma fala e outra. Assim, acho que Flavia (Meireles) e eu dialogamos sim, quero dizer, ao não ocupar o mesmo espaço físico ao mesmo tempo, damos a ver o vazio que fala entre uma fala e outra. Não vejo como uma passagem de solo para duo; desde que comecei a trabalhar em meus projetos, a questão de uma não unidade e de uma não totalidade já estava presente nos solos. Já nos trabalhos anteriores percebi que estar em cena é estar em relação, portanto a entrada da Flavia em cena – pois já trabalhamos juntas há 4 anos – veio como mais um passo em direção à construção desse “espaço despedaçado” do qual você falou. É isso, trabalho pra que venham os desacordos, as arestas, os não encaixes e os desvios consequentes das parcerias e das conversas. Talvez essa seja a pontuação política do meu projeto artístico, desviar, desviar inclusive de mim mesma. Em redor do buraco tudo é beira, como os meus projetos anteriores, investe no sentido não pacificado, incompleto e transitório das coisas, nas coisas que emergem por entre as coisas. Em redor…, assim como In-organic, fala da morte, mas da morte que aparece num corpo frenético (des)habitado por uma voz coletiva, impessoal, massiva e não reflexiva. Estão mais uma vez presentes os objetos que, aliados ao corpo desse trabalho – o vazio –, criam uma terceira coisa. Dessa vez, são 200 cenouras que borram, atravessam e marcam o espaço cênico. No entanto, diferentemente de meus trabalhos anteriores, que se construíam num contínuo desdobrado por associações, quero dizer, uma coisa que dá na outra e por associação em outra e assim por diante, Em redor… é feito de pequenos fragmentos autônomos que chamamos de manifestações curtas. Estou interessada nos saltos, nos vazios, nos solavancos que essa estrutura pode engendrar e esse interesse está ligado ao tal desamparo que você apontou numa das suas perguntas anteriores. É um desamparo, mas um desamparo que (bem, assim espero) deixa espaço para o desejo, um desamparo/convite para se deixar ir sem saber muito bem pra onde. Para ser ver prazerosamente (assim espero) “ido”.

LAURA ERBER: Flavia, gostaria que você falasse um pouco sobre a elaboração da linguagem do Em redor e da pesquisa em torno dessas manifestações curtas. 

FLAVIA MEIRELES: O que chamamos de manifestações curtas apareceu como estratégia para fazer da fragmentação, da descontinuidade e da interrupção, uma matéria de trabalho. Interessava nelas a rachadura no sentido que elas poderiam causar, ou antes, a beira estreita de sentido que elas poderiam carregar, seu estado provisório. Não se trata aqui da fragmentação entendida como parte de uma unidade ou de uma série, mas sim de cada fragmento ou manifestação como coisa em si, como síntese ou saturação de uma idéia. Portanto, cada parte foi trabalhada autonomamente para depois ser colocada em tensão. Para cada manifestação construímos um ritmo e tempo próprios que deu a ver um jogo de relações. Elas lidam com excitação, entupimento, festejo e violência em constante (re)articulação. O que me interessa nesta proposta é lidar com essa tensão tal como ela se mostra, evitando resolvê-la ou apaziguá-la.