No final dos anos 60, o Brasil sofreu o período de maior repressão sob o governo da ditadura militar. O teatro, que vivia momentos de grande vigor político, viu-se sistematicamente perseguido, não só pela censura, que mutilava e proibia suas peças (em dez anos, a censura federal interditaria mais de quinhentos filmes, quatrocentas peças de teatro e cerca de duzentos livros), como também pela ação direta da polícia e de grupos paramilitares de direita (como o Comando de Caça aos Comunistas que, covarde e impunemente, espancou o elenco inteiro de Roda Viva, no Teatro Ruth Escobar, a 18 de julho de 1968, após o espetáculo). O teatro de tendência política passou a ser, então, uma atividade de alto risco. Embora resistindo bravamente, o teatro sentiu a força desse freio e perdeu grande parte de seu ímpeto contestador.

Foi nesse momento que surgiu, de modo mais ou menos espontâneo, uma corrente de teatro independente que, procurando fugir às condições de censura e repressão e, ao mesmo tempo, opondo-se à inércia do teatro comercial, voltou-se para as populações periféricas da grande São Paulo. Foram dezenas de grupos que se formaram a partir de circunstâncias diversas e nem sempre tiveram claro seus objetivos. Em geral, traziam como bagagem mais a força do idealismo do que propriamente um trabalho estruturado. A grande maioria teve vida efêmera, não resistindo a mais de uma montagem e muitos nasceram e morreram antes mesmo de alcançarem o palco. Apenas 2

alguns poucos lograram superar os obstáculos e chegaram a traçar uma história.

Sem constituir propriamente um movimento, esses grupos definiram, de fato, uma tendência, que atravessou toda a década de 1970, caracterizada por uma série de afinidades. Entre os elementos comuns, os que dão melhor contorno a essa corrente do chamado «teatro independente» estariam: 1) a disposição de atuar fora do âmbito do teatro comercial/profissional, optando preferencialmente por espaços não-convencionais nos bairros periféricos; 2) adoção de formas populares de espetáculo; 3) opção por uma carreira itinerante, empenhando-se, num segundo momento, na manutenção de um local-sede no bairro; 4) investimento em modos de criação e produção coletivos; 5) intenção de atuar como núcleo gerador, favorecendo a criação de novos grupos; 6) empenho em estabelecer um vínculo de solidariedade com o espectador e sua realidade, 7) recusa em filiar-se, como coletivo, a qualquer partido ou organização política, 8) intenção de garantir a sobrevivência do grupo sem o auxílio de verbas estatais, como chancela de independência.

Também a trajetória percorrida por cada um coincidiu, em seus pontos essenciais, com o percurso realizado pela maioria. As situações de impasse, de conflito, os obstáculos foram similares, variando o momento do processo em que ocorreram e a qualidade da resposta dada. Do mesmo modo, as deficiências foram basicamente as mesmas e o reconhecimento delas surgiu ou foi conseqüência de situações de conflito entre a intenção – militância artística, produtos populares – e a prática.

Na evolução dos grupos, os saltos qualitativos quase sempre se deram em função de momentos críticos, em geral cisões provocados por dissidências internas, cujos motivos variavam de discordâncias pessoais a conflitos de ordem político-ideológica. Essas constantes cisões foram em parte responsáveis pelo alto índice de rotatividade no interior dos grupos e, em alguns casos, contribuíram de modo decisivo para a dissolução final do coletivo.

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Na formação inicial dos grupos, predominaram os integrantes da classe média, com algumas exceções no caso dos raros grupos nascidos na própria periferia. Formados a partir de um núcleo central, foi somente no contato com as populações dos bairros que foram se agregando simpatizantes, como novos membros do grupo ou como colaboradores periféricos. É nesse processo que se deu a integração paulatina de elementos de extração social inferior. Eventualmente, os grupos itinerantes promoveram a formação de outros, espalhados pela periferia, os quais iriam obedecer mais ou menos às mesmas diretrizes, embora apresentando uma produção bem mais precária.

Dos grupos que tiveram maior persistência, a maioria se formou de um núcleo composto por indivíduos com alguma vivência teatral – ou saídos dos palcos profissionais, ou oriundos de uma prática amadora a meio caminho do profissionalismo.

Embora formados a partir de experiências diferenciadas (teatro amador, teatro universitário, dissidências de elencos profissionais, etc.), havia uma mesma convicção de não reproduzir os modelos do teatro comercial. Isso se devia, principalmente, a uma insatisfação com o alcance do chamado teatrão (teatro comercial de padrão realista) junto às camadas mais populares, que não têm acesso facilitado às salas de espetáculo. De outro ângulo, o teatro produzido no centro era visto como afinado com setores das classes média e alta, estabelecidas geograficamente na região, de nível cultural e poder aquisitivo mais elevados.

Havia um consenso no sentido de ir buscar o público no seu habitat, ou seja, nos bairros periféricos mais afastados, e de produzir um teatro atraente que correspondesse à realidade dessas populações. Esse teatro, portanto, deveria ser popular, no sentido de uma linguagem acessível e de conteúdos que «falassem de perto» ao homem da periferia. Essa vinculação com o social descartaria o teatro como mero entretenimento e determinaria um compromisso de solidariedade do produtor com os problemas e necessidades dessas populações periféricas (compostas, de um modo geral, por operários, pequenos comerciantes, empregados do setor do comércio e do setor bancário, funcionários sem qualificação e empregadas domésticas, muitos dos quais moradores de favelas).

O rompimento com o padrão do teatro profissional do centro deu-se também no que concerne ao modo de produção: as relações internas do grupo deixaram de se pautar pela hierarquia e pela divisão do trabalho por especialização e passaram a ter como base a produção coletiva e a realização das tarefas específicas através de subgrupos integrados. Todos no grupo tentavam participar, na medida do possível, de todas as etapas do processo de criação. A remuneração cedia lugar ao comprometimento com objetivos em comum. Por opção, a maioria dos grupos adotaria um sistema amador de sustentação financeira, cada membro mantendo sua sobrevivência por meio de empregos diversos, e dedicando-se ao teatro durante os períodos noturnos e fins-de-semana.

Itinerando pelos bairros, movidos pelo desejo de alcançar uma comunicação eficiente com esse público de periferia, levavam espetáculos, na maioria, precários de produção e de qualidade artística. Teatro pobre strictu sensu, apresentavam-se onde fosse possível, nas condições deficientes que a comunidade pudesse oferecer – salões adaptados, pátios de escolas, ao rés-do-chão em qualquer espaço consentido.

Os procedimentos de montagem de espetáculo, como os processos de criação de textos, variavam de grupo para grupo, sempre tendo por base o esforço comum. Na quase maioria das vezes, os participantes formavam um coletivo muito heterogêneo, com alto índice de inexperiência em matéria de produção artística. Essa insuficiência era combatida com um empenho de estudo e leitura de textos de e sobre teatro, embora o difícil acesso à bibliografia e o tempo escasso dedicado ao trabalho artístico não permitiam, na maioria das vezes, que esse esforço resultasse em uma melhora visível na qualidade da produção. No geral, acabava prevalecendo o aprendizado com base no método de tentativa-e-erro. No relato de uma atriz do grupo Galo de Briga (grupo de origem universitária), as primeiras tentativas de construção do cenário de uma determinada peça fracassaram devido à inexperiência na escolha de material. Ao jogar tinta sobre o isopor – material escolhido – logo se deram conta de que ele absorvia a tinta e se desmanchava. Para a atriz, essa imagem do isopor era a mais fiel imagem do próprio trabalho do grupo: «… essa coisa de vai fazendo errado, vê que derrete, aí faz de novo…» (Alexa Leirner, depoimento, 1986).

A esfera da direção do espetáculo foi uma das poucas nas quais a especialização mereceu um certo respeito: em geral a direção ficava a cargo daquele ou daqueles integrantes do grupo com maior experiência (em alguns casos, pesava também o critério de antigüidade). Muitos dos grupos, na tentativa de fugir dos esquemas de produção do teatro profissional e no empenho de valorizar o esforço coletivo, criaram metodologias de trabalho que acabaram por fixar como marca do grupo. Este é o caso, por exemplo, do União e Olho Vivo (o mais antigo dos grupos e o único a seguir atuando nos dias de hoje). O tema da peça sempre deveria atender a um assunto de interesse das classes trabalhadoras – «greve», por exemplo – e seria encenado segundo a dinâmica de um folguedo popular – o «bumba-meu-boi», por exemplo. O grupo contava com a figura de um diretor-dramaturgo, César Vieira, que preparava um primeiro esboço do texto que era, então, discutido e experimentado pelo coletivo, procedendo-se, em seguida, às modificações, até o texto definitivo.

Na verdade, para esses grupos, a finalização dos espetáculos se dava necessariamente no contato com a comunidade. Era a partir das reações do público durante a peça, das enquetes, entrevistas e debates que o espetáculo ia sendo apurado, transformado, afinado.

A maioria quase absoluta dos grupos realizava debates após o espetáculo. O debate, de certa forma, explicitava a intenção do grupo e tornava mais íntima a sua relação com o público e, consequentemente, com a comunidade. Era um momento privilegiado no qual o grupo podia aferir o alcance de seu trabalho e também aprofundar seu conhecimento sobre a realidade de seu público, tendo em vista a continuidade de sua militância artística. O tema central da discussão quase sempre se referia ao assunto (conflitos) da peça. Um debate, portanto, de «conteúdo», no qual raramente entrava em pauta os procedimentos artísticos. 6

Para muitos grupos, em especial aqueles com maior definição política, o debate era um momento-chave para se realizar uma reflexão coletiva sobre a realidade política-econômica. Nesse extremo, a aferição do entendimento do espetáculo e o esclarecimento das dúvidas dos espectadores cediam lugar a uma discussão sobre os problemas locais (condições de segurança e saneamento, falta de escolas, construção de creches, etc.).

Outro marco definitivo na história da maioria dos grupos foi a decisão de abandonar a itinerância pela adoção de um espaço fixo. Em alguns casos, este seria apenas um local de ensaios e ponto de encontro dos participantes; em geral, a fixação em um bairro corresponderia a um desejo de aprofundamento do trabalho, não só do ponto de vista da atividade criativa como da relação com a população daquela comunidade. Em casos extremos, membros do grupo chegaram a fixar residência próximo ao local da sede, embora o mais comum tenha sido que essa idéia, apesar de aventada, não tenha se concretizado.

Quase sempre o projeto da sede trazia atrelada a idéia de uma «casa de cultura», que o grupo pretendia colocar à disposição da comunidade. Havia a pretensão de suprimir a carência de espaços culturais e de lazer do bairro, dando oportunidade, consequentemente, à produção dos artistas locais. Desse modo, os grupos passariam a ser gerenciadores de um projeto de promoção e agitação cultural. A falta de experiência em tarefas desse tipo e a dificuldade em arregimentar adeptos locais à proposta foram dois dos fatores que mais contribuíram para a falência de tais projetos.

Por outro lado, a proposta da sede configuraria uma saída para a itinerância, que acabava por constituir um ônus pessoal muito alto para os membros do grupo. Nos primeiros tempos, a itinerância correspondera plenamente a um impulso de militância que, no final da década de 1970, começava a sofrer as influências da mudança política que se processaria a partir do governo Geisel, com o aceno da abertura no final do túnel. Sem ser exatamente uma coincidência, a fase de estabilização em um local-sede, salvo algumas exceções, configurou um último esforço de sobrevivência do grupo.

Ao entrar a década de 1980, a grande maioria dos grupos se havia dissolvido. Os motivos que determinaram o fim dessas experiência não diferem muito entre si. Primeiro, a questão financeira pesou em praticamente todos os casos, sendo a principal responsável pelo abandono do projeto de casa de cultura. Por outro lado, com a abertura política, os próprios projetos foram colocados em xeque, denunciando sua natureza circunstancial, isto é, seu caráter de resposta a um determinado contexto político (o recrudescimento da ditadura militar). O processo de transformação dos grupos coincidiu com as alterações que se foram processando na sociedade: o crescimento dos movimentos populares organizados e, posteriormente, junto com a reforma partidária, o (re)fortalecimento dos sindicatos e organizações de classe.

Essa correção geral de rumos se refletiu no interior dos próprios grupos. Muitos participantes abandonaram o militância cultural para uma militância mais diretamente político-partidária. Muitos não conseguiram realizar uma leitura clara do novo contexto e sucumbiram diante da dificuldade de adaptação. Outros, no sentido inverso do primeiro, reintegraram-se ao teatro profissional e seguiram suas carreiras de atores ou diretores.

Com exceção do grupo União e Olho Vivo, que adquiriu uma sede própria e continua se apresentando, principalmente em eventos de natureza solidária (campanhas contra a fome e contra a pena de morte, por exemplo), já não existem praticamente grupos com essas características e os que sobrevivem a duras penas na periferia reassumiram seu caráter de teatro diletante (amador).

Por outro lado, vemos atualmente ressurgir o movimento de teatro universitário e uma nova modalidade de produção artística, que poderíamos chamar de «teatro comunitário»: um trabalho realizado no seio de uma comunidade (bairro, quadra, casa de cultura municipal), envolvendo-a como um todo, com uma orientação mais próxima de uma proposta pedagógica de arte-na-educação do que qualquer intenção político-militante.