A intervenção urbana Naquele bairro encantado[1] foi realizada em Belo Horizonte (MG), durante o ano de 2011[2]. Para a realização do projeto, um grupo de atores alugou uma casa no bairro Lagoinha. O trabalho foi desenvolvido em diversas etapas. Os atores habitaram o bairro e a casa durante alguns meses. Os deslocamentos pelo bairro e dentro da casa foram feitos somente portando máscaras e figurinos. Os personagens geraram desde estranhamento até a condução de relações de amizades, mas os rostos reais dos atores não foram vistos.
O ponto de partida do trabalho no bairro Lagoinha foi o estabelecimento de uma ficção. Os personagens-máscaras se deslocavam pela região conforme outros habitantes. A relação com o bairro e com os moradores interveio, de alguma maneira, no comportamento e na identidade desses personagens que responderam, reagiram, interagiram com as pessoas dentro de suas realidades. O trabalho dos atores não foi somente exploratório em busca de vivências, experiências, ou materiais como depoimentos, percepções e sensações. Não foi, portanto, um trabalho que visava levantar material para a cena. E sim, já estabelecia em si, a cena, pois ao invés de recolher e obter experiências do real, que seriam transformadas em cenas ficcionais, infiltrava doses de ficção na realidade do bairro e se estruturava a partir das reações a esse movimento.
Na intervenção Naquele bairro encantado, a primeira atitude era teatral: a aproximação à teatralidade se deu na escolha de iniciar o trabalho a partir de personagens-máscaras que já pressupunham e instituíam a ficção. A segunda atitude era performativa: o caráter performativo estava no uso dessa teatralidade quando esses personagens-máscaras, seres ficcionais, se infiltravam no bairro e o habitavam, deslocando-se, interagindo, reagindo ao contato com os outros moradores e, é claro, conduzindo, também, esse jogo a partir das experiências vividas no local. Nessa relação, o jogo da teatralidade pressupunha que as máscaras podiam a qualquer momento retornar ao ponto de partida – revelar suas identidades como atores, como indivíduos, como aqueles moradores do bairro, de “carne e osso”, reais e, portanto, a temporalidade antes suspensa, poderia retornar a sua passagem cotidiana. Essa condição, que é a convenção teatral, gerava a expectativa nos moradores do bairro de que os mascarados retirassem a máscara e revelassem seus rostos.
Josette Fèral, em artigo sobre a teatralidade, defende através de exemplos, que esta noção incluí um processo, uma produção que permite a criação de um “ espaço outro” que se torna “espaço do outro”:
La condición de la teatralidad sería, entonces, la identificación (cuando ella fue deseada por el otro) o la creación (cuando el sujeto la proyecta sobre las cosas) de um “espacio otro”del cotidiano, um espacio que crea la mirada del espectador, pero fuera del cual el permanece. Esta división en el espacio que crea um afuera y um adentro de la teatralidad es el espacio del otro. Es el fundador de la alteridad de la teatralidad. (FÈRAL, 2004, p. 91)
Para Féral, o olhar do espectador não é passivo e constituí a condição para a emergência da teatralidade instituindo uma modificação qualitativa das relações entre os sujeitos: o outro se torna ator, seja porque manifesta que está representando, seja porque o simples olhar que o espectador põe sobre ele, o transforma em ator e o inscreve na teatralidade (FÉRAL, 2004, p. 91-92). Como a teatralidade é um “fazer”, é uma ação, é um ato performativo, conforme Fèral afirma. Para esta teórica, o teatro só é possível porque existe a possibilidade da teatralidade e o teatro a convoca (FÈRAL, 2004, p. 93). Logo, a instituição da teatralidade é um ato performativo: uma ação que atrai o olhar e um olhar, que, por sua vez, transforma essa ação.
Féral pergunta quais seriam os signos específicos da cena. Através de uma citação, esta teórica mostra que a teatralidade seria uma propriedade do ator que transforma o real que o circunda, teatraliza o que o rodeia, teatraliza o real. A polaridade eu-real pressupõe os pilares fundamentais de toda a reflexão sobre a teatralidade: seu lugar de emergência (o ator) e seu resultado (a relação que institui com o real). As modalidades de relação que se estabelecem entre os dois pólos, eu-real, estão dadas por um jogo. O ator expressa uma travessia do imaginário, o desejo de ser outro gerando transformação e alteridade; baseia-se em simulacros, ilusões. (FÈRAL, 2004, p. 94) O espectador, por sua vez, crê no outro sem crer de todo. O corpo expressa a presença do ator, o imediatismo dos acontecimentos e sua própria materialidade.O jogo implica uma atitude consciente do participante (ator, dramaturgo etc.) no qual se leva a cabo o “aqui e agora de um espaço outro” diferente do espaço cotidiano. Aficção baseia-se num simulacro e não na mentira. O que é proibido: romper o jogo. Assistir a um ato de representação inscrito em uma temporalidade diferente da cotidiana, no qual o tempo está suspenso e é reversível, pressupõe que o ator pode retornar a seu ponto de partida. A teatralidade registra para o espectador o espetacular, ou seja, uma relação outra com o cotidiano, um ato de representação, a construção de uma ficção (FÉRAL, 2004, p. 101).
A relação dos moradores do bairro Lagoinha com as máscaras foi marcada pela aceitação da ficção; muitos receberam esses personagens convidando-os para participar de atividades cotidianas como, por exemplo, fazer a barba na barbearia. Alguns moradores os convidaram para entrar em suas casas e tomar café, instituindo encontros reais. O jogo foi, portanto, aceito e estimulado. Como poderíamos analisar essa aceitação que gerou estranhamentos nos próprios atores? O estranhamento ocorreu uma vez que os moradores passaram a conviver com as máscaras como se esses personagens “fossem reais”.
Lembro aqui de um dos casos acontecidos, relatados pelos atores, de um vendedor ambulante de sapatos anatômicos que tendo se dirigido à casa dos mascarados, se pôs a oferecer e explicar seus produtos para uma das máscaras. O vendedor explicou também as vantagens de um dos produtos e sua adequação a apenas uma das máscaras e não às outras que ali estavam. O motivo era porque os mascarados tinham dito que aquela seria a pessoa da casa que teria mais interesse, por ser hipocondríaca. Uma análise possível para essa total aceitação do jogo e instituição da teatralidade é através do conceito de Suzi Frankl Sperber: “Pulsão de ficção”. Esse conceito se refere a capacidade e necessidade irrestrita de todos os seres humanos de criar, a fim de elaborar experiências pessoais. Na elaboração da hipótese, Sperber se refere a um exemplo, dado por Freud, de um menino que brinca com um carretel. Quando sua mãe sái, ele realiza uma ação repetitiva de jogar e puxar de volta o carretel, repetindo “foi-se, voltou”. À essa atitude, de elaboração da ausência da mãe, Sperber associa uma iniciativa de efabulação:
A “pulsão de ficção”, “efabulação”, é inerente à vida humana. A pulsão de ficção ou de criação é um impulso imperioso que leva à formulação de um construto que quer dar conta dos sentidos de um evento vivido. Passa à criação e recriação de construtos, que formulam hipóteses acerca de acontecimentos que tocam fundo numa existência. Trata-se de fenômeno que existe desde os primórdios, não só da humanidade, mas de cada vida humana, no passado, no presente e no futuro. Portanto, a partir da primeira infância. (…) Imaginário, simbolização e efabulação constituem a pulsão de ficção, necessária para a expressão e compreensão de emoções fundas, repercussões psíquicas e espirituais. (SPERBER, 2009, p.7)
Para Sperber, portanto, há uma pulsão de ficção na atitude do menino referido e em outras atitudes humanas. É através dessa pulsão que se expressariam entendimentos, elaborações, superações e mesmo a transcendência de situações difíceis, de perda, dor e também, de alegria.
Esse impulso ficcional confere sentido à vida humana, e, em especial, à criação, pois aguça a percepção através de um movimento duplo de aproximações e afastamentos do mundo: um movimento que consiste em deixar-se penetrar pelo mundo (cor, imagem, som, ritmo, espaço, linhas, alturas, dimensões, eventos, emoções), isto é aproximar-se do mundo; o outro que consiste, ao mesmo tempo, em afastar-se dele, contar, ou criar, para mais tarde agir sobre o mundo. (SPERBER, 2009, p. 8).
Se considerarmos, então, o conceito de “pulsão de ficção” para a análise das reações dos “espectadores de última hora”, no bairro Lagoinha, perceberemos que, para eles, foi prazeroso participar do contrato estabelecido pelo jogo. As máscaras funcionaram como um estímulo a criação de outras ficcionalidades, ao compartilhamento de momentos e histórias, de experiências que apareciam nos causos contados pelos moradores do Lagoinha. Foi criado assim, um “espaço outro”, conforme termo de Fèral, no qual foi permitido e estimulado inventar. Os habitantes do bairro recuperaram um espaço que talvez tenha se tornado pouco presente em suas vidas, de criação e de contação de histórias. Lembro aqui, por exemplo, de uma noite na qual acompanhei um dos episódios da intervenção, que consistia em uma serenata de músicas pelas ruas do bairro. Em frente a uma das casas na qual a serenata parou, uma senhora idosa foi até o portão acompanhar. Contou aos atores que, em sua juventude, foi cantora em bailes nos quais acompanhava o marido, que era musicista. Ali, naquele momento, se pôs a cantar junto aos atores relembrando seu próprio repertório.
Num tempo em que a emergência do real guia diversas experiências cênicas, talvez seja preciso resgatar a ficção. Deixar que a ficção interfira também na realidade, recuperando a engrenagem mesma da teatralidade. Conforme Rancière, “o real precisa ser ficcionado para ser pensado”(2005, p.58):
Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. (…) A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. (…)
Os enunciados políticos ou literários fazem efeito no real. Definem modelos de palavra ou de ação, mas também regimes de intensidade sensível. (RANCIÈRE, 2005, p. 58-59)
Prezando pela positividade, a ficção pode contribuir para gerar “espaços outros” de entendimento e de convivência. O pensamento de Sperber contribui para estender essa reflexão:
Cabe a nós a partir do conhecimento destes conceitos teóricos de criação, filosofia, teologia, sem perder de vista a realidade política e social, reconhecermos as dimensões transcendentes do ser humano, com a sua busca, explícita ou negada, do sagrado. E agirmos de maneira a evitar sempre, o mais possível, que sejam cometidas ações que levem à desqualificação de seres – o que pode acionar a fragilização da ipseidade [3] e levar ao caminho para a perda do sentido da vida – própria e dos outros. (SPERBER, 2009, p. 14)
Concluo assim, que o ato de instituir a ficção pela via da teatralidade não é gratuito, nem tampouco desnecessário, como poderia parecer em análises que procurassem por resultantes mais objetivas. A subjetividade da proposta deve constituir, portanto, a base de sua busca a fim de trabalhar, por si e pelo outro, à procura por espaços de respiração, de criação.
Notas
[1] A intervenção Naquele bairro encantado foi idealizada e dirigida por Rogério Lopes. Acompanhamento e discussão conceitual: Elisa Belém.
[2] O trabalho continua a ser realizado em 2012, com modificações. O grupo nomeia o modo de trabalho como ´habitação teatral´, ao invés de intervenção urbana.
[3] “A ipseidade corresponde ao poder de um sujeito pensante de ser fiel a seus valores, apesar das mudanças psíquicas e físicas que ocorrem a um indivíduo ao longo de sua vida. Neste sentido, a ipseidade equivale a uma promessa feita a si mesmo – mantida ao longo da existência.” (SPERBER, 2009, p. 12)
Bibliografía
FÉRAL, Josette. Teatro, teoria y práctica: más allá de las fronteras. Buenos Aires: Editorial Galerna, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
SPERBER, Suzi Frankl. O diálogo entre mesmidade (identidade e genética) e a ipseidade, responsável pela ética – ou, de uma alteridade constitutiva da responsabilidade na relação Eu-Tu. Correlatio. Brasil, 15, jun. 2009. Disponível em: