MATHEUS COSMO: Como se deu a formação do grupo e como nasce o primeiro projeto de vocês?

CRISTIANE ZUAN ESTEVES: OPOVOEMPÉ foi uma iniciativa minha, no sentido de que fui eu quem convidou as pessoas para participarem de um projeto que se chamava Guerrilha Magnética. O nome do grupo surgiu abrindo um tarô indígena. Eu precisava de um nome, para mandar um projeto, e lá estava escrito “Povo em pé”. Falei: é isso! “Povo em pé” são as árvores: os indígenas chamam as árvores de Povo em Pé. A princípio, há a dicotomia e o jogo entre raiz e céu, certo? Mas, na verdade, o nome também é sobre o povo em pé na rua; o povo em pé, em ação; o povo em pé no ponto de ônibus; o povo em pé reivindicando… Então, eu achei que era um nome que abarcava tudo isso e ele veio e eu disse: “É esse!”. Eu estava voltando para o Brasil, depois de seis anos fora. Eu tinha morado no México, em Nova Iorque, na França… A experiência urbana era muito gritante para mim, no sentido de pensar em diferentes configurações de cidade e na maneira como as próprias cidades nos determinam – como determinam o modo como as pessoas se relacionam, o modo como elas lidam com o espaço público… Talvez isso tudo não estivesse teorizado, mas era algo que estava totalmente introjetado na minha vivência. Eu tinha todo um trabalho de Viewpoints[1], que é algo de que eu gosto muito e que me dava uma chave para olhar a realidade e pensar nas dinâmicas que se repetem, nas rimas poéticas que existem no próprio viver cotidiano. Então, depois de tudo isso, eu finalmente chego ao Brasil e venho novamente para São Paulo, que era uma cidade na qual eu já tinha morado. Chegando aqui, eu sou totalmente impactada por toda essa tensão, fricção, riqueza, diversidade e, principalmente, pelas muitas coralidades. Na época, eu já tinha essa nomenclatura, mas eu só conseguia olhar e falar: “Nossa, aquelas mulheres, faxineiras, sentadas, fumando na frente do prédio: isso é uma dança! Elas estão dançando!”. Então, houve um momento no qual eu comecei a olhar a cidade e perceber uma dança do cotidiano, com a repetição do ônibus que passa, das pessoas que fazem um gesto esperando o ônibus, das pessoas que saem para fazerem suas ações… Eu percebi que havia sempre um elemento de dança, de jogo, que muito me interessava.

Eu dava aula de Viewpoints na Casa das Caldeiras. Formei um grupo por lá. Um dia, voltando para casa, tive a ideia de fazer um projeto que se chamasse – e o nome já veio assim – Guerrilha Magnética. Eu tinha feito uma pesquisa, anteriormente, com um Coletivo do Rio de Janeiro, o Coletivo Colher, que não existe mais. Esse Coletivo me chamou para dar aula e eles sempre faziam coisas no espaço público. Nesse curso, eu comecei a ver algo que me interessou: um trânsito entre o evento, no qual algo eclode, e a invisibilidade. Ou seja, uma ação está acontecendo, mas ninguém vê – o eixo invisível. E me veio essa ideia: como seria atuar nesse elemento poético da cidade, numa estrutura de guerrilha – ou seja, você entra a partir do invisível, como um guerrilheiro. Aí veio uma pesquisa que eu tinha feito acerca do Manual do Guerrilheiro Urbano, do Carlos Marighella. Eu transformei este manual pensando a partir do ponto de vista de um artista. O Marighella cita várias coisas: as armas do guerrilheiro urbano são sempre recolhidas do real, do concreto; um guerrilheiro precisa se misturar e não pode parecer diferente do entorno, daquilo que o cerca; sua ação precisa acontecer e logo desaparecer; ele precisa ter rotas de fuga; ele tem que viver de seu próprio trabalho… Para mim, parecia que ele estava falando sobre como um artista urbano teria que agir.

Tendo essa ideia, eu chamei as pessoas que estavam estudando comigo para fazerem parte de um coletivo que eu chamei de OPOVOEMPÉ e disse que eu já tinha um projeto chamado Guerrilha Magnética. Eu cheguei até a escrever um projeto de Fomento sem que o próprio grupo realmente existisse. É claro que não pegamos esse projeto, mas ele serviu para que eu construísse uma grande base teórica. Aliás, eu estava voltando da França e eu estava muito mais teórica: eu olho para o que eu escrevia e penso que eu era, de fato, uma francesa escrevendo em português. Eu fiz uma construção teórica do que seria ir para rua, mesmo antes de ir para a própria rua.

M: Isso era em 2004?

C: Em 2004 surgiu o nome e, em 2005, esse projeto. Começamos a pesquisar esse ir para rua. Esse ir para rua trazia algo que me interessava e que vem do Richard Schechner: um potencial de jogo. Ele fala disso em algum texto. Existe uma potência de jogo na realidade que está só esperando para ser liberada. Então, é por isso que agora eu estou convencida a falar de uma ocupação dos espaços, mas eu sempre falei mais em uma liberação dos espaços. Eu entendo que a ocupação é uma estratégia política nesse momento[2], mas eu acredito que um artista sempre chega para liberar um espaço – liberar num sentido meio “queda da Bastilha”: liberar para que tudo aquilo que barra os fluxos, que impede a livre expressão, a criação, o jogo e a relação seja estourado – e isso acaba eclodindo uma outra possibilidade de nós nos relacionarmos, conversarmos, discutirmos. O trabalho da Guerrilha Magnética sempre acabou atuando nessa frente. A intervenção é um disparador: de repente, as pessoas estão se relacionando, conversando, jogando – até mesmo participando, com a gente, da ação. Nós ficamos dois anos fazendo só a Guerrilha Magnética – esse projeto de uma subversão que começou silenciosa, no espaço público, se apropriando das lógicas que já existem, em supermercados, pontos de ônibus, bibliotecas: a gente fez em vários lugares. Dentro dessas ações, nós começamos a incorporar o recolhimento de material do público. Nós lançávamos uma pergunta – daí o magnético: a gente atraía, sem impor uma interação; a gente criava uma situação ou algo que despertava a curiosidade e a pessoa ficava questionando o que era aquilo e o que realmente estava acontecendo, até que ela começava a vir até nós e, ao invés de nós respondermos qualquer pergunta que ela pudesse fazer, éramos nós quem lançava uma outra pergunta e essa pergunta lançada acabava virando um material que voltava para nós, sob a forma de uma resposta, e que começava a ser parte do que a gente carregava, como as trouxas, as portas[3]… Essa era a brincadeira.

M: Em algum lugar, isso também é acreditar que, em um simples encontro cotidiano, entre duas pessoas quaisquer, verdadeiramente pode acontecer alguma coisa e que, a partir desse encontro, pode ser revelada a real potência de algo ainda a ser escavado e trabalhado.

C: Nesse sentido, eu sou super lecoquiana[4]. Eu fiz todo o treinamento dos atores do Lecoq. Para mim, interessa sempre o espaço entre – aqui, o espaço entre você e eu, por exemplo. Quando eu voltei para o Brasil, essa foi uma das coisas que mais me chocou: eu olhava uma cena e percebia um vazio entre os atores, ou entre nós, do público, e eles. A questão sempre foi como fazer com que esse espaço entre fosse esse espaço onde você puxa e empurra (uma imagem bem do Lecoq), onde as tensões acontecem e onde algo verdadeiramente dança. E é sempre esse espaço entre que pode ser aquecido e que pode ferver.

M: No final das contas, é nesse espaço que acontece o real fenômeno teatral.

C: Sim, no entre! Eu tenho experiências minhas como atriz, lá no passado, onde, estando em cena, eu era capaz de sentir uma espécie de onda vindo do público. A gente sentia essa onda e depois a empurrava – e, na verdade, tudo acontecia sempre entre uma coisa e outra. Por isso, sempre, meu desejo por dinamização, que é um elemento do teatro de guerrilha. O Schechner fala uma coisa interessante: todos os movimentos autoritários, organizados, se fazem em linhas retas, e tudo que é libertário gira. É só você parar e observar: nós estamos o tempo todo nos deslocando em linhas retas – como quebrar isso? O trabalho, então, é sempre o de pensar e revelar o conteúdo poético que já está na cidade e que nós, às vezes, não estamos dispostos a ver. Há outras referências no meio disso tudo. Eu poderia falar do Llorenç Barber, um grande criador da música plurifocal, que eu tenho como uma grande referência, por conta daquilo que ele fala sobre o espectador. Ele trabalha com um espectador parado, estático, que está sentado observando o desenrolar de uma situação, e um outro espectador, chamado peripatético, que é aquele que vai juntar todos os pontos. Quando você cria um evento que acontece em vários locais, a pessoa vai juntando as fichas e criando, ela mesma, um contexto. Tudo isso também determinou um pouco essas ações iniciais, da Guerrilha – essa possibilidade de um espectador peripatético versus um estático. Em todos os nossos trabalhos de deslocamento, o espectador está fazendo isso o tempo inteiro, por exemplo no Aqui Fora, no Farol…

M: E mesmo nos espetáculos em sala. Na Festa, por exemplo, são várias coisas acontecendo…

C: Sim! É sempre você quem junta os pontos. Na rua, nós tínhamos ainda uma outra visão do espectador. Nós tínhamos uma divisão em vários níveis. Havia aquela pessoa que estava passando por ali enquanto nós estávamos fazendo alguma ação, mas ela não percebia – e essa pessoa também é um espectador, claro. Em contraposição, havia uma outra pessoa que percebia que algo estava acontecendo, se perguntava sobre aquilo que estava acontecendo, deixava surgir o estranhamento, mas ela, sozinha, não conseguia decifrar aquilo e acabava vindo nos perguntar. Sempre que eu falo isso, eu me lembro de um episódio que eu acho ótimo. Eu estava no supermercado, documentando uma intervenção. Veio uma senhora conversar comigo, dizendo: “Você viu eles ali? Eles estavam lá, segurando as batatas! Eles estão se mexendo agora, mas eles estavam lá, segurando as batatas!!”. A pessoa percebe que há alguma coisa acontecendo e as certezas que ela tinha em relação às dinâmicas daquele espaço caem por terra – e isso me interessa muito. Sempre tudo é muito previsível. Eu ando na rua e eu sei exatamente como as coisas funcionam. Mas, se algo começa a ser estranho e eu não possuo uma chave para ler aquilo, ou aquilo simplesmente não pode ser imediatamente decodificado, então toda a realidade passa a ser um lugar de possibilidade. Tudo pode estar acontecendo! Eu posso sempre estar fazendo parte de uma outra coisa que também está acontecendo. Isso eu acho extremamente significativo. É uma questão de olhar e se perguntar: onde é que eu estou? Os lugares passam a ser um enigma. Então, os lugares também encontram a potência para ser qualquer coisa. Eu falei de dois, mas há ainda um último nível de espectador: aquele que participa. Ele entende, percebe que é um jogo e diz: “eu vou brincar” – ele entra com a gente. No final das contas, eu acredito que essa seja uma base que acabou entrando, também, no trabalho de sala d’OPOVOEMPÉ. De alguma forma, toda essa pesquisa desses dois primeiros anos, focados apenas na Guerrilha, também desemboca e vai sendo retrabalhada nos trabalhos de sala ou mesmo nos percursos sonoros e nas outras intervenções. Ou seja, isso acabou guiando, de alguma forma, todo nosso trabalho.

M: E, no caso, a busca de vocês sempre foi por esse último espectador?

C: Esse é aquele que, com a gente, se diverte. A busca, pensando em um espetáculo de sala, é óbvia: você quer que o espectador participe. Mas, na rua, é interessante que haja tudo isso de que eu falei. Na rua há sempre uma total pluralidade. Ninguém foi até lá para ver algo. Nesse sentido, qualquer aceitação já é interessante. Mesmo que a pessoa não entenda, não jogue, ou perceba algo, mas não entre em jogo, ela já começa a agregar um outro nível de leitura sobre aquele espaço – alguma coisa aconteceu.

M: Você falou principalmente desses primeiros anos. Em algum momento, houve uma mudança decisiva no trabalho de vocês, dentro de toda a trajetória de pesquisa e experimentação? Algum momento no qual todos esses paradigmas de que você me falou, essenciais no início da trajetória, acabaram indo para outros lugares e tomando novos rumos?

C: Cada trabalho foi chamando o outro, de alguma forma. O trabalho seguinte é quase uma resposta ao que foi deixado em aberto, à pergunta que sobrou do anterior. Algo em que nós sempre tentamos pensar é: qual a pergunta que precisa ser feita neste contexto? Sempre: qual é a pergunta? E isso é uma diferença muito grande em relação a outros trabalhos. Existe uma necessidade humana, sempre gritante, de querer encontrar as respostas, mas nosso trabalho é sempre pensado em relação às perguntas que achamos que precisam ser feitas. Isso é muito difícil, principalmente no que diz respeito à necessidade de manter vivo esse impulso de sempre tentar formular uma pergunta. Esse é o motor que atravessa todos os trabalhos: que perguntas são essas? Por exemplo, nós fizemos os dois anos de pesquisa, fizemos um trabalho de sala (afinal, todos éramos atores e queríamos fazer um trabalho de sala) e, depois, também acabamos fazendo uma intervenção na qual nós pulávamos em um sofá, numa feira, e depois o quebrávamos… Para o espetáculo, havia uma foto: “9:50 Qualquer Sofá”. Tudo isso gerou um trabalho a partir de uma relação de causalidade perturbada. Um exemplo: pense em uma pessoa cai do décimo quarto andar e sobrevive. Alguém deve se perguntar: o que é isso? Até que, no final das contas, a gente acaba percebendo que a realidade não é real… Depois, acabamos fazendo este mesmo trabalho na Estação da Luz. Foi quando percebemos que, apesar de a pesquisa ter nascido na rua, apesar de termos feito uma série de intervenções anteriormente, apesar de termos incorporado tudo isso no nosso trabalho, quando voltamos à rua o trabalho que havia sido concebido para a sala não funcionava com toda a potência que ele poderia ter. Nasceu, então, o projeto Aqui Dentro Aqui Fora: uma tentativa de recolher uma dramaturgia, ou uma ideia, ou um conceito, e criar duas dramaturgias distintas, mas que fossem análogas: uma que acontecesse na rua; outra, em sala. Essa foi uma resposta àquele trabalho anterior, por exemplo, que havia deixado uma pergunta para nós. Já o projeto A Máquina do Tempo (ou longo agora) foi mais um esforço de pensar em como tratar de um assunto como aquele. Cada aspecto do tempo era necessário que fosse trabalhado de uma maneira específica… Mas eu diria que existe uma ruptura nessa trajetória, no sentido de que no Arqueologias do presente, do núcleo d’OPOVOEMPÉ, você só conta com a Manuela e eu. Ainda é OPOVOEMPÉ, porque é a linguagem que eu, como diretora, trago do grupo. Foi um convite feito ao OPOVOEMPÉ, pelo Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP), mas as outras meninas não quiseram fazer. Não sei se por que era pouco dinheiro, se por que o tema era complicado… Por isso, esse é um dos trabalhos que mais possui convidados. Nesse sentido, houve uma ruptura na nossa maneira de trabalhar. Foi um pouco diferente.

M: Você disse que sempre um trabalho tenta se construir a partir da pergunta deixada pelo anterior.

C: Exato!

M: E qual foi a pergunta que ficou do último trabalho que vocês fizeram?

C: Isso é o que eu estou me perguntando o tempo inteiro… Eu acho que existe algo que ainda vem do Arqueologias, com a pergunta: e o que é participar? Que também é: o que é ser representado? Nós estamos vivendo isso no Brasil: uma completa crise de representatividade… Junto a isso, sempre se soma a inquietação de saber quanto se conduz da participação do público. Ainda é preciso descobrir estratégias para que seja liberada, ainda mais, a ação do público. Essa inquietação vem desde o começo: quanto você conduz, quanto você deixa em aberto… Mas a pergunta exata, deste momento, eu ainda não sei. E, no final das contas, a pergunta a gente também só fica sabendo depois, também… Mesmo assim, neste momento, eu arriscaria que minha pergunta seria: “Como responder a este momento?”. E eu não tenho noção do que está acontecendo…

M: Pensando no trabalho que vocês desenvolvem, vocês se considerariam parte de algum movimento específico do teatro, ou carregariam, para si, um espécie de modelo em via negativa – ou seja, um modo de produção teatral que vocês não querem reproduzir?

C: Eu não posso falar pelas outras pessoas do grupo – ainda mais pelas atrizes, que adoram fazer personagens. Eu também gosto, como atriz, de fazer personagens; como diretora, não. Como atriz é super divertido você fazer uma personagem, mas como diretora eu me pergunto qual é o sentido da personagem: eu quero um ator que possa agir – algo muito mais voltado para o lado performativo da coisa. Eu tive a experiência de colaborar com Stefan Kaegi[5] em várias ocasiões. Há algo no trabalho deles que me interessa: a possibilidade de expressão do real. O documental sempre me interessou – também porque eu sou formada em Jornalismo: as entrevistas são sempre parte dos projetos e dos processos. Em relação àquilo que eu me contraponho, eu posso dizer que eu não consigo ir a uma peça que me exclui, enquanto espectadora. Uma peça que me exclua no sentido de que, naquele espetáculo, tudo se encontra ali para ser visto, apenas. Se for assim, eu acho mais prazeroso ir ao cinema, para ver toda a reconstrução da realidade. Se há uma grande quarta parede no teatro, eu acho que prefiro ir ao cinema. Eu acho que o teatro é sempre o lugar desse espaço entre. Eu não tenho problema algum com uma estética realista. Eu estou falando de uma certa linguagem que, mesmo que me diga que não existe mais uma quarta parede, ainda cria e configura uma grande parede – a quarta, quinta parede, que está embaixo, em cima, que é o teto… Ela está lá! Isso não me instiga. Eu não tenho muita vontade de fazer. Há um texto que eu gostaria de montar e o que eu penso, agora, é em como quebrar toda a estrutura da peça para poder, verdadeiramente, montar esse texto. Em resumo: eu acho que há um grande viés do teatro documental que me interessa e, para mim, personagens só funcionam se você souber que eu estou brincando. Eu não admito que um ator diga que se identifica com uma personagem: o ator está em jogo! Esse, para mim, é o trabalho do ator: estar em jogo, em ação. Eu não preciso fingir que sou outra pessoa: eu posso brincar de fingir, mas você sempre sabe que eu estou brincando e você brinca comigo, como uma criança, entende? Essa dimensão precisa estar explicitada, como linguagem. Quando não se explicita e ainda quer me fazer fingir e acreditar que aquela pessoa, aquele ator ou aquela atriz, pode ser uma outra pessoa, eu não gosto. Em processos, é comum alguns grupos nos chamarem para dialogar, mas eu acho que nós ainda estamos em lugares diferentes de alguns grupos fomentados. De alguma forma, eu diria que nós trocamos pouco com outros grupos, no Brasil. Sim, trocamos com pessoas na Dinamarca, com o LUME[6], mas há pessoas e grupos que fazem tudo isso com muito mais frequência do que nós. Quando nós começamos a falar em intervenção urbana, ninguém sequer sabia do que nós estávamos falando. Parecia algo em outra língua. Hoje, há um grande número de pessoas fazendo. Isso é algo que foi crescendo e despertando o interesse das pessoas.

M: E como vocês lidam com as questões de produção, financiamento e gastos?

C: Em relação ao trabalho artístico, eu sou a diretora e tenho a concepção e tudo mais. Contudo, na gestão de produção tudo é muito mais horizontal, em relação aos cachês, quem serão os produtores, o espaço onde entrar em cartaz: tudo isso é parte de uma gestão conjunta. Com o tempo, nós fomos nos especializando. Por exemplo, eu sempre sou aquela que escreve os projetos; outra fica responsável pelas questões monetárias; alguém corre atrás das assinaturas; alguém sempre é o revisor… Mas somos sempre nós mesmas quem tenta tudo. Nós tivemos sorte de os nossos trabalhos mais longos terem dado um salto. Acho que o Arqueologias deu um salto, mas que só foi possível pelos saltos anteriores do Aqui Dentro Aqui Fora e da Máquina do Tempo. Esses últimos trabalhos de que eu falei vieram com o Fomento ao Teatro[7]. Durante os dois primeiros anos, nós não tivemos absolutamente nada. Nós tivemos apenas o apoio da Casa das Caldeiras para poder ensaiar naquele espaço. Depois, finalmente ganhamos um PAC – que, depois de um tempo, acabou virando o ProAC[8] –, para fazer A Festa… Enfim, nós dependemos de financiamento público. Nós dependemos de convites, como aconteceu com o Arqueologias: foi um convite para criar um trabalho para a I Bienal Internacional de Teatro da USP, sobre algo de que eu quisesse falar, desde que dialogasse com a curadoria do evento, que tinha como lema Realidades Incendiárias.

M: E disso nasceu o espetáculo A Batalha da Maria Antonia.

C: Na verdade, eu estava muito interessada em pensar naquilo que ainda restava da ditadura, muito inspirada pelo livro do Safatle[9]. Então, eu lembrei que exatamente na rua do teatro havia acontecido a famosa batalha[10]. Fui finalmente até a FFLCH[11] e encontrei o tal do Livro Branco[12]. Aquilo tudo me pareceu muito interessante. A ideia inicial era fazer um percurso pelo prédio inteiro. Um percurso no qual fosse possível reconstruir as coisas ou ao menos contá-las exatamente nos espaços, mas o TUSP é separado do Centro Cultural Maria Antonia, e a gente não pôde utilizar todos os espaços e tivemos que nos restringir ao teatro, apenas. Conseguimos usar apenas a lavanderia, que foi a única coisa que eles permitiram. Meu primeiro projeto era de utilizar o espaço inteiro.

M: Mas, no período de ensaios, vocês conseguiram ter acesso aos outros espaços?

C: Não, a gente não pôde ensaiar nos outros espaços. A gente até tentou, mas eles não deixaram. Por causa disso, o espetáculo se concentrou na sala. A ideia era fazer tudo como algo itinerante, por todo o prédio, culminando no momento dos jogos[13]. As pessoas iriam pelo prédio, receberiam todas as informações e depois voltariam para jogar. Mas não aconteceu… Eu acho que acabei me perdendo na sua pergunta, mas acho que é importante dizer como as condições que você tem determinam toda sua linguagem; como nós, enquanto criadores, precisamos estar atentos e pensar naquilo que temos e no que podemos fazer com aquilo. O Espelho eu queria que acontecesse em uma escola de crianças. Era minha ideia inicial. Que fosse um percurso dentro da escola, que as pessoas conversassem e comessem, mas sempre dentro da escola. Nós consultamos várias escolas públicas e nenhuma quis nos aceitar. Então, eu achei melhor resumir a uma mesa, com as pessoas sentadas ao redor dela – mas, ao lado da mesa, era necessário que houvesse um parquinho. E era o que havia na Água Branca. Outro exemplo: como O Farol foi determinado pelo fato de que o Henrique Mariano, que fez a direção de produção, foi conosco visitar vários hotéis na zona da Berrini, porque eu queria que tudo saísse de um hotel – de um heliponto, se fosse possível, como se nós estivéssemos chegando de helicóptero. Seria a extrema velocidade das pessoas que se deslocam em helicópteros pela cidade versus as pessoas que utilizam o trem. Nós conseguimos negociar com o hotel Sheraton. E foi maravilhoso porque disseram que também havia um outro espaço que, caso estivesse aberto, nós poderíamos utilizar. Nós fomos visitar o Golden Hall e, gente, eu tinha visto Dalai Lama ali. Tudo aquilo apareceu, apenas, você entende? Eu estava indo ensaiar e peguei um trem. No meio do caminho, eu pensei no percurso do trem e pronto: feito. Isso é importante: pensar em quanto é a própria vida que determina o conceito. No final das contas, as condições de produção determinam o que pode ser a concepção do espetáculo – não o conceito inicial, gerador do trabalho, mas a concepção do formato do trabalho a ser apresentado. A Festa, também: eu gostaria que fosse em um lugar de onde fosse possível ter uma grande vista da cidade. Não aconteceu! Então, existe a questão do dinheiro – até porque nosso trabalho não se sustenta com bilheteria. Até hoje, não se sustentou, porque nossos trabalhos são sempre com um número restrito de pessoas. Seria necessário executar milhares de apresentações, o que não é viável. Nosso trabalho, definitivamente, não se encaixa no mercado. Ele precisa de mecenas: ou é o SESC, ou a USP, ou um edital que a gente consegue.

M: Você citou um trabalho que surgiu a partir de uma mulher que limpava uma janela. De fato, a rua comunica muito ao trabalho de vocês. Todas as situações mais cotidianas já são extremamente comunicativas. Você acredita que o desejo de vocês de estarem nas ruas é a expressão de um desejo de entrar em contato direto com aquilo que, desde sempre, era a matéria para o próprio trabalho de vocês? Seria sempre esse o movimento: não adianta falar sobre as coisas, é preciso sempre ir ao encontro delas?

C: Sim, mas sempre com uma transposição. Sempre há uma recriação em cima da situação. A materialidade das coisas me interessa muito. Em um dos passos da Guerrilha Magnética, nós tínhamos um roteiro: “como acontecem as intervenções”. O roteiro inicial era: observação. Isso é bem lecoquiano, também. Antes de fazer uma ação em algum lugar, nós primeiro ficamos observando tudo, e depois começamos a experimentar. É o concreto que nos alimenta, para que nós possamos dialogar. Há sempre um desejo de dialogar com o que acontece. Por isso, também, nos percursos sonoros, a utilização de alguns textos teóricos e de alguma ficção, mas basicamente e essencialmente entrevistas.

M: Desde o início houve o trabalho com entrevistas. Sempre, em algum lugar, as entrevistas aparecem.

C: Acho que sim. Mesmo quando não temos uma entrevista, utilizamos algo de caráter documental. Na Alemanha, entrevistamos várias pessoas e fizemos um percurso sonoro em alemão e em inglês, com várias entrevistas. E eu achei uma entrevista incrível da Hannah Arendt e coloquei no trabalho! O que é mais interessante do que aquela voz da Hannah Arendt falando, em alemão? Há sempre o desejo de utilizar o máximo de materialidade. É muito melhor ouvir a Hannah do que eu tentando dizer alguma coisa de modo semelhante. Acho que existe algo também de um gosto meu: eu escolhi estudar Jornalismo porque eu gostava de fazer entrevistas. Mas, depois, eu não conseguia escrever tudo em um texto pequeno, para uma revista. Tinha que ser teatro! É dar voz àquele que está ali; dar voz a um lugar. É acreditar na contribuição do outro. Às vezes, você vai para rua achando que vai fazer alguma coisa e o outro faz com você – e é extremamente potente o que vem das pessoas. O Espelho é isso… Na rua, vem um rapaz conversar com você e você diz: “Eu vou para casa: é essa pessoa quem tinha que estar fazendo isso, não eu!”. Em suma, é sempre a vontade de ter trocas, de proporcionar uma troca – e isso é muito rico.

M: Um pequeno jogo, Cris: suponhamos que haja três vertentes dominantes no teatro. A primeira delas implica uma relação entre diferentes linguagens e o trabalho se cria a partir desse hibridismo fundamental; a segunda insiste na necessidade de produzir uma nova forma de conhecimento; e a terceira seria uma forma de ativismo social – um artivismo, como ficou conhecido. Você se identificaria com alguma dessas três linguagens? Mais com uma delas e menos com outra?

C: Eu acho que, de alguma forma, as três dialogam com todo o trabalho. Desde o começo há algo de micropolítica no nosso trabalho, começando com uma proposta para que a pessoa se aproprie do espaço público. O hibridismo não é uma questão para nós: ele está colocado. As linguagens híbridas acontecem. A gente lida com essas linguagens o tempo inteiro. Mais híbrido que o Arqueologias…

M: Como você definiria o Arqueologias, por sinal?

C: Eu sempre falei que era um salão de jogos, uma exposição… É um espaço imersivo… Eu não sei dizer! Para mim, a coisa mais difícil é definir. O projeto começou em dezembro de 2012, quando eu recebi o convite, mas, no meio disso, quando nós já tínhamos, inclusive, escolhido a matéria sobre a qual queríamos falar, quando a pesquisa já estava em andamento, houve junho[14]. Naquela época, a gente já percebia que as pessoas não estavam conseguindo dialogar. Então, nós precisávamos colocar as pessoas para dialogar. As pessoas precisavam trocar. Meu marido tem uma filha do casamento anterior e nós sempre jogávamos aqueles jogos de tabuleiro. Na minha adolescência, eu não tinha visto tudo isso. Eu me apaixonei pelos jogos de tabuleiro! Daí os jogos nos quais é preciso encontrar definições, como o jogo do dicionário, em que você precisa criar definições para palavras impossíveis. Nasce disso o desejo de criar os jogos. Para mim, as pessoas precisavam de um mecanismo por meio do qual elas discutissem sem saber que estavam discutindo, sem virar um discurso monocromático. A pergunta foi: quais dispositivos podemos criar? Nasceram os jogos. São dispositivos que revelam algo. Há o jogo dos presidentes, que eu acho ótimo: quantos presidentes foram derrubados? Agora seria maravilhoso jogá-lo! Quantos foram eleitos? Os mandatos terminaram? Teríamos que acrescentar um, agora: o presidente interino… Para mim, isso era importante: como construir um espaço para que as pessoas dialogassem? Os jogos foram a maneira encontrada.

M: Principalmente para você, como uma das criadoras, fazendo parte de todo esse processo, que começa em dezembro de 2012 e que só vai estrear em outubro de 2013, quais foram, exatamente no meio de toda essa trajetória, os impactos de junho de 2013?

C: Foi exatamente no meio! O processo era para ter tido um pouco mais de meses, mas apareceu uma viagem para Dinamarca. O processo ficou mais curto. Ele foi bastante curto, por sinal. Nós fizemos workshops com algumas pessoas antes, pesquisas com pessoas que tinham vivido a própria Batalha da Maria Antonia, que fazem parte do trabalho por meio dos depoimentos ouvidos. Mas junho, especificamente, me deixou enlouquecida! Eu fui naquela primeira grande manifestação que saiu de Pinheiros. Para mim, mas também acho que para todos, aquilo foi muito impactante. Eu estava lá contra o Alckmin[15] e, quando olho para o lado, está tudo cheio de “Fora, Dilma!”. Na hora, eu me perguntei: “Como assim, ‘Fora, Dilma’? Eu não vim para um ‘Fora, Dilma’, mas para um ‘Fora, Alckmin’. Eu vim no meu direito de me manifestar: por que a polícia militar vai me bater, se eu estou apenas me manifestando?”. Eu fui por uma razão muito específica, vi aquilo e achei extremamente esquisito. Nos dias seguintes, eu decidi não ir às manifestações e fiquei pela Internet. Comecei a descobrir os sites de direita – os sites que, naquela época, já falavam de impeachment, já pediam intervenção militar… Descobri que, até hoje, os militares da América Latina conversam, entre si, em uma rede de espionagem e se encontram determinadas vezes por ano. Algo surreal!

M: Como o Jucá declarou, no áudio vazado, que “estou conversando com os generais, comandantes militares. Está tudo tranquilo, os caras dizem que vão garantir. Estão monitorando o MST, não sei o quê, para não perturbar”[16]…

C: Sim!! Naquela época, eu já comecei a dizer que estava havendo um golpe. Eu fiquei em pânico e eu tinha certeza de que eram os militares, mas eu me perguntava se eu estava ficando louca, por conta de toda a pesquisa que eu estava fazendo. Porque, quando você descobre que o golpe, no Brasil, foi civil militar e que havia institutos bancando todos os filmes produzidos, que estavam nas fábricas e cinemas, e que bancaram intelectuais, isso significa que houve uma construção da mentalidade do golpe, antes de o golpe verdadeiramente acontecer. Então, eu olhava para a realidade e percebia que eles estavam fazendo a mesma coisa. Quando vieram as eleições, eu me acalmei um pouco, mas depois todos os discursos voltaram – e agora está ainda mais claro que tudo é realmente uma repetição, mas uma repetição diferente, eu diria.

M: Como uma farsa, dessa vez.

C: É isso. E eu percebia como tudo antes é criado, primeiro, no imaginário e só depois no concreto. E eu me lembro do ex-ministro da Justiça falando que, até 2013, Dilma tinha até 70% de aprovação; depois de tudo isso, ela caiu para 10, 15, 20%. Uma reivindicação legítima e pontual, contra o aumento das passagens, foi completamente transformada e, de repente, você redescobre toda a direita que tinha ficado um pouco adormecida e que está na sua própria família, no seu círculo de amigos… Naquela época, toda essa situação deu uma urgência ainda maior ao processo. Percebemos que havia algo que estava fora do lugar. E, antes mesmo da peça, houve uma grande repressão na própria Rua Maria Antonia. Uma amiga brinca e conta que viveu a própria batalha da Maria Antonia, em outro tempo. A polícia não deixou a manifestação avançar e lançou bombas… Também havia toda a mobilização na USP, com uma greve dos estudantes, que nos levou a ver a concretude das coisas. Eu me lembro de ter visto as capas do Jornal Última Hora e 80% das capas falavam sobre estudantes, professores, universidade… Durante 1968, foi um grande assunto. Tudo foi estabelecendo um grande diálogo entre os tempos, em um sentido arqueológico, de fato. Você descobre todo o projeto de educação que foi aprovado em 1969 e vê, agora, todo o desmonte da universidade[17] e por aí vai.

M: Você considera um perigo sair dos teatros, ir para as ruas e acabar convertendo o espaço público em um outro tipo de teatro, transformando todas as pessoas que ali estão como participantes em um outro tipo de público, no final das contas? Ir para as ruas e acabar transformando a própria rua naquele teatro de onde você queria ter saído desde o começo?

C: Eu acho que todo teatro documental – e que é a crítica que sempre se faz aos trabalhos do Rimini Protokoll – deve se preocupar com a maneira como se utiliza daquelas pessoas, como lidar com a dimensão do real que está ali, com todas aquelas pessoas. Como dosar todas as coisas, sem acabar se apropriando demais de algo. Sempre quando nós fazemos nossos percursos, eu gosto de falar que é um documentário e que você, como espectador, vai preencher todo o trajeto com as imagens, na medida em que você se encontra ali e pode ter qualquer ponto de vista. Muitas vezes, quando as intervenções terminam, as pessoas me dizem coisas que, para elas, foram surpreendentes e que eu sequer havia reparado. Eu me lembro da minha mãe dizendo que tinha visto uma bandeira do Brasil rasgada, no topo do edifício, e eu nunca tinha sequer prestado atenção naquilo. Há algo que é da construção do espectador, de sua própria experiência, e é sempre ele quem constrói sua experiência. Exatamente por isso eu não gosto de trabalhar com atores e personagens na rua, por exemplo. Você quem deve escolher se olha para a senhora ou para o cachorro. Ou seja, a construção final do espetáculo é sempre feita pelo espectador. Com isso, eu acho que eu acabo minimizando o risco de transformar a rua em um teatro, mas, claro, há sempre uma mediação e um desejo de fazer com que as pessoas experienciem um estado poético da própria cidade. Ao mesmo tempo, sempre existe uma esfera de reflexão, liberdade, que simplesmente acontece e que também pode ser criticada.

M: Pensando em um possível curso de artes cênicas, se você fosse abrir uma escola que fosse inteiramente sua, quais seriam as três disciplinas mais fundamentais?

C: É engraçado, porque eu estive na SP Escola de Teatro[18], bem no começo, para ajudar na implementação do curso de atuação. Isso é difícil – muito difícil! Para mim, o fundamental para qualquer artista seria trabalhar a escuta – algo que eu trabalho intensamente, principalmente a partir dos Viewpoints, com a camada das respostas[19]. Eu me lembro, sempre, de uma frase: a maior qualidade de um ator é que ele saiba escutar. Eu acho que uma disciplina que se voltasse à observação e escuta seria fundamental. Eu também trabalhei muito com observação, no treinamento do Lecoq. Você vai para rua observar as pessoas e para o zoológico observar os animais: a partir disso, você cria algo. Para mim, escuta e observação são uma das disciplinas fundamentais.

M: No final das contas, a escuta é sempre mais importante que a própria ação?

C: Qual ação você é capaz de fazer se não houver uma escuta? É uma ação surda e cega, desconectada do mundo e do meio onde você se encontra. Primeiro, a escuta. É preciso sempre partir do pressuposto de que você nunca tem uma ação genial que precisa ser feita. Você tem sempre uma reação! Uma reação a tudo que você recebe. A segunda disciplina seria voltada à criação mesmo. O Lecoq tinha algo muito bom em relação a isso. Por exemplo: nesta semana, trabalhamos com a máscara neutra. Nesta mesma semana, você tinha que criar cenas, com as outras pessoas, e apresentá-las para toda a escola. É um desafio de estar em constante criação. A disciplina poderia se chamar: desafios de criação – o tempo inteiro. A última disciplina seria voltada ao pensamento, propriamente dito. Não que haja esse pensamento e essa escuta nos outros. Mas, aqui, eu penso em algo que fosse capaz de estimular um pensamento em relação à realidade. Você observa e escuta, mas também precisa elaborar todo esse material. Ou seja: quais as ferramentas que você utiliza no trato com essa mesma realidade? Eu não falei de um treinamento técnico porque isso depende sempre do que você quer fazer. Aqui, eu estou pensando em filosofia, em algo que caminhe perto desse lugar.

M: Agora, uma pergunta que contém um pequeno jogo dentro dela: se a vida parece ser sempre atropelada pelo tempo presente e o teatro é, por excelência, um acontecimento que se dá no tempo presente, quais as matérias que atropelam o teatro neste momento – para o bem e para o mal? O que está aí pedindo para ser dito?

C: Difícil isso… Eu me lembro daquela imagem do Walter Benjamin de que o corpo humano não é feito para a velocidade. A gente utilizava essa imagem em O Farol: um minúsculo corpo humano em meio a toda velocidade. A palavra ‘atropelamento’ me lembra dos carros… Acho que há elementos que estão entrando na nossa vida e que, de alguma forma, precisam ir ao teatro. Nossa relação com a tecnologia, por exemplo. Nós só estamos aqui, fazendo essa entrevista, porque combinamos tudo ontem, pela Internet. Isso acaba determinando todo nosso pensamento e nossa própria relação com as coisas. Eu não digo que o teatro deve reproduzir tudo isso, mas ele deve pensar a partir disso: quem somos, a partir dessas novas relações e desses logaritmos que nos determinam? Essa é uma grande pergunta. É preciso pensar em como usamos a tecnologia e em como ela nos usa. Isso, de alguma forma, também penetra o teatro – com o perigo de se transformar em algo parecido com boys playing with toys. Eu estive na Alemanha em 2014 e fui a um festival. Nós éramos bolsistas e havia um egípcio, um iraniano, um grego… Ainda mais depois de 2013, tudo em que eu conseguia pensar era: o que está acontecendo nas ruas? As ruas e as redes, sem saber quanto é manipulado ou não. Isso o teatro não pode ignorar. O teatro não pode ignorar a realidade presente, as configurações geopolíticas. A política é sempre determinante. De alguma forma, é necessário que esteja presente a crítica ao capitalismo. As corporações determinam quem somos, o que comemos. Elas estão mandando demais – e cada vez mais! Isso precisa atravessar toda a linguagem teatral.

M: A questão é sempre como fazer essa crítica. E é sempre ela que determina a forma do próprio espetáculo.

C: Sim! Você pode simplesmente apontar o dedo, ou pensar em qual tipo de experiência pode verdadeiramente fazer essa crítica. Eu acho tudo isso muito difícil, porque estamos imersos nessa grande experiência que determina aquilo de que gostamos, aquilo que queremos, nossos valores… Estamos imersos nesses signos todos. A questão é sempre sobre como fazer com que seja possível retirar os véus, para que seja possível enxergar alguma coisa. Tudo isso precisa estar no espetáculo. É algo que passa pela crítica à sociedade, pela crítica à sua própria estrutura. Há uma representatividade limitada e as pessoas querem tomar tudo isso de volta.

M: É interessante porque o Fredric Jameson diz que este é o grande paradoxo de toda arte que se diz política. Na medida em que ela também está imersa dentro dessa mesma sociedade, sua crítica ao âmbito social é também uma crítica a ela mesma. Este parece ser sempre um grande jogo: de que modo é possível lançar uma crítica fazendo, primeiro, uma crítica a nós mesmos?

C: E é a grande dificuldade. Nós falamos muito n’OPOVOEMPÉ: nós somos classe média, branca, no Brasil. Todas nós estudamos em escolas privadas – sem exceção. Não somos de escolas públicas. Eu estudei em uma universidade pública, mas só porque eu havia sido preparada em uma escola particular. Eu sempre acho válido nos colocarmos em uma posição de estrangeiro, mas eu também acho que é preciso cuidado para não olhar para o outro com um olhar colonizador. Eu acho que nós vivemos em um momento muito confuso e é preciso pensar em como criticar seu próprio ponto de vista em relação a alguma coisa, já que ele é criado a partir das várias experiências repetidas, das informações sobre as quais você teve algum acesso, das escolhas que você faz – e quanto as escolhas feitas já não vieram de outros lugares.

M: E essa é uma das questões fundamentais para o entendimento da violência. Há quem diga que, diante de um ambiente no qual todo seu poder de escolha se reduz apenas à seleção daquilo que já foi anteriormente escolhido para você, a única resposta possível é uma violência desmesurada, que também é uma autodestruição e uma busca por reconhecimento.

C: Sim, e sendo bem honesta com você: eu não tenho noção do que acontece, de fato, na periferia brasileira, tomando como base aquelas narrativas de pessoas que chegaram em casa e se depararam com seus vizinhos e familiares mortos, por exemplo[20]. No final das contas, nós não temos ideia do que é tudo isso – eu, pelo menos, não tenho! E há movimentos que nascem da periferia e que são motores: quando a periferia realmente entender sua força e descer do morro, será o começo da revolução. Algo poderá acontecer.

M: É engraçado porque, em relação ao espetáculo A Batalha da Maria Antonia, uma das coisas de que eu mais gosto é o final da peça, com aquele grande refrão da música do Sérgio Sampaio: “Eu quero é botar meu bloco na rua”. Depois de reviver toda a experiência de 1968, para mim existe uma potência muito forte nesse retorno para o mundo, nessa reintegração daquele bloco de pessoas à rua.

C: E essa música veio depois! Eu tinha um fim de que eu não gostava e, quando eu encontrei essa música, que eu ouvia na infância, eu coloquei. Porque é isso: é isso que nós temos que fazer! “Ocupar e resistir”[21]!

M: E quais foram as maiores descobertas em relação a esse trabalho e o que voltou para vocês, em relação às pessoas que o assistiram? Até porque, depois de terem apresentado no TUSP de São Paulo, que fica exatamente na Rua Maria Antonia, vocês fizeram algumas apresentações em outros lugares, até pelo próprio circuito do TUSP.

C: Sim, e isso foi fundamental! No circuito de apresentações do TUSP, fomos apenas o Pedro e eu, do elenco original. Além de nós dois, foram o Beto, meu marido, e a Andrea Tedesco. Era outro elenco! E, como nós ensaiamos muito pouco esse trabalho, ele existe como estrutura, apenas – não foram os atores criadores que levantaram tudo, na íntegra. Por isso, houve também uma outra liberdade. Nessa viagem, o público começou a se colocar e dizer suas memórias. Naquela cena em que as pessoas precisam escolher entre jogar uma memória no lixo, guardar para si ou compartilhar com todos os outros, as pessoas começaram a compartilhar algumas que elas liam e também começavam a falar sobre suas próprias experiências, com alguns dizendo que haviam apanhado da polícia e tudo mais. O teatro se tornou um fórum de discussão. Houve uma cidade (Rio Preto, eu acho) na qual o espetáculo acabou e as pessoas foram até as caixas e começaram a ler tudo, umas para as outras. Nós fomos embora e elas continuaram por lá. Foi uma descoberta! O público se apropriou totalmente do espetáculo: esse, com certeza, é um retorno muito interessante. Nós fomos muito surpreendidos por todos os depoimentos e pela maneira como as pessoas entraram no espetáculo. Algo aconteceu naquele espaço! Uma pequena curiosidade sobre o retorno do público: era interessante que, quando nós estávamos montando o cenário, algumas pessoas iam até o TUSP e elas, que haviam vivenciado tudo aquilo, diziam que nós estávamos reconstruindo o Centro Acadêmico! Agora, o retorno central, de todas as pessoas, era sempre a constatação de que é incrível como nós não sabemos. Nós não temos noção de quanto a ditadura perpassou todos os níveis do imaginário, da cultura e da nossa sociedade, sobretudo.

M: Por isso, é urgente retornar à ditadura militar? Quais nossas maiores dívidas em relação a esse período, as feridas que ainda permanecem sem cicatrização, e o que ainda hoje perdura?

C: Ontem mesmo eu estava me lembrando de como começou minha inquietação frente à ditadura militar. Eu me lembrei de que, na minha época de faculdade, eu fui entrevistar uma professora da FFLCH e ela me disse que estava pesquisando como a transição da ditadura para a democracia, no Brasil, havia sido guiada pelos militares, sem qualquer resquício de punição. Ela comparava a situação com a Argentina e o com o Chile e dizia que nós éramos os únicos a não punir os militares. Eu acredito que muito do que aconteceu com a Dilma vem disso. Houve a Comissão da Verdade, mas ela não conseguiu fazer tudo que ela poderia e deveria ter feito. Há um capítulo não contado nessa história. Os caras tinham que ser presos, punidos, escrachados – antes que eles morram. Essa ainda é uma história que nós não contamos direito. E corremos o risco de que as pessoas da minha geração acabem acreditando no que acontecia: nós íamos para a escola e isso era chamado de revolução. Eu estudei isso: havia uma grande foto do Médici no meu livro e o capítulo se chamava “A Revolução de 64”. Durante anos eu estudei isso. Hoje, essas pessoas que aprenderam isso são nossos políticos.

M: Votando “Sim”, pela família[22]…

C: Pois é! É preciso que se faça essa análise, que não foi feita. E é preciso que se pense tudo isso para os dias atuais, também: qual é a história que será contada? O que estará escrito nos livros didáticos daqui a dois anos? Qual narrativa vai sobreviver? Por isso, é urgente refazer a narrativa e perceber quais estruturas ainda sobrevivem – como, e sobretudo, a polícia militar. Essas estruturas precisam ser implodidas. Eu digo que este trabalho precisa ser feito, mas ele está sendo feito. Há uma série de filmes, principalmente documentários, que são incríveis e contam verdadeiramente essa história. A questão é saber como um cidadão médio e como as crianças se debruçam sobre essa história. Nós estamos em um instante de perigo. Essas pessoas que estão no poder agora certamente vão querer alterar todos os livros didáticos. Os colégios militares ainda dizem revolução… Por mim, era mais simples: para crimes de Estado, não existe anistia. Não existe anistia àquele que matou o Amarildo[23], nem aos torturadores de 1964. Ou seja, seria preciso alterar o Judiciário, as leis, o Congresso, tudo!

M: Além de extinguir o pífio argumento de que seria preciso observar e averiguar os dois lados da coisa, como se os resistentes à ditadura pudessem ter chegado perto de possuir o mesmo poder de força do Estado; como se a violência tivesse sido proporcional.

C: Não é: nunca é! O Estado tem o monopólio da força: acabou! Não é possível conceber esse argumento. Havia uma atitude de guerrilha, de resistência, contra o Estado. Não era proporcional. E, se você lê aqueles livros antigos, você encontra relatos horrorosos de que matavam pessoas e depois contratavam testemunhas para afirmar que os mortos estavam armados. Desse jeito, querendo ou não, as narrativas iam se construindo. Tudo uma construção! Acho que a gente acaba vivendo grandes repetições porque a história não foi contada…

Notas

[1] Viewpoints (puntos de vista escénicos) es un entrenamiento basado en improvisaciones de movimiento escénico. Las técnicas preparan el actor a desarrollar su escucha a la escena y su habilidad para responder en el momento a lo que está pasando aquí y ahora, en el escenario.

[2] No início da manhã de 12 de maio de 2016, o Senado aprovou, com 55 votos favoráveis e apenas 22 contrários, o pedido de abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014, com cerca de 54 milhões de votos. Desde então, mesmo sem a real comprovação de um verdadeiro crime de responsabilidade que legitimasse, oficialmente, a causa para a abertura do processo, facilmente percebido como um golpe de Estado, amplamente apoiado pelos setores jurídico e midiático, o então vice-presidente, Michel Temer, assumiu a presidência nacional, implantando, já nos primeiros dias de seu governo, uma política extremamente conservadora, com sérios ataques aos setores menos favorecidos da sociedade brasileira e aos programas e conquistas sociais, bem como a todo o âmbito efetivamente público, num descarado impulso neoliberal de privatização e terceirização, e com a exclusão de vários ministérios, dentre eles o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e o Ministério da Cultura. Contra a extinção do MinC, fundado em 1985, artistas organizaram variadas intervenções e manifestações, culminando na ocupação das chamadas Fundações Nacionais das Artes (Funarte), em quase todos os Estados do país. Mesmo com a decisão, anunciada no dia 21 de maio, de recriar o Ministério da Cultura, as ocupações permanecem em vigência (a entrevista foi editada em 01/06/2016). O motivo pelo qual as ocupações permanecem é a premissa de que não se negocia com um ilegítimo governo golpista.

[3] De fato, tanto as trouxas quanto as portas constituem objetos fundamentais para o trabalho desenvolvido pelas intérpretes, especialmente no que diz respeito às intervenções “O que você não deixa para trás?”, de 2006, e “Fora de chave/Out of key(s)”, de 2008, respectivamente.

[4] Jacques Lecoq (1921 – 1999) fue un actor, mimo y un maestro de actuación francés. Es un referente del teatro del gesto.

[5] Stefan Kaegi, junto a Helgard Haug e Daniel Wetzel, compõe o conhecido coletivo Rimini Protokoll.

[6] O LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais foi criado em 1985 pelo ator, diretor e pesquisador Luís Otávio Burnier, juntamente com os atores Carlos Roberto Simioni e Ricardo Puccetti e a musicista Denise Garcia.

[7] Aprovada em dezembro de 2001 e promulgada em janeiro do ano seguinte, a Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo foi uma conquista dos grupos locais, especialmente do Movimento Arte Contra a Barbárie. Com o apoio desta lei, grupos que possuem uma pesquisa continuada, tida como inviável nas atuais condições de mercado, apresentam seus projetos em busca de apoio municipal.

[8] ProAC: Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo. O mesmo significado designava a sigla PAC, que acabou ganhando um novo sentido a partir do segundo mandato de Luiz Inácio Lula de Silva, principalmente a partir de 2007, passando a representar o Programa de Aceleração do Crescimento.

[9] A referência feita pela entrevistada diz respeito ao livro a seguir: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

[10] A chamada Batalha da Maria Antonia ocorreu nos dias 02 e 03 de outubro de 1968, acarretando a morte de um estudante secundarista chamado José Carlos Guimarães, de 20 anos de idade, e a completa destruição do antigo prédio da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Tudo começou quando os estudantes da Universidade de São Paulo tentaram arrecadar fundos, a fim de tornar viável sua participação no congresso organizado pela UNE, a União Nacional dos Estudantes, cuja sede havia sido invadida e destruída por um incêndio, logo no início do período ditatorial: o golpe se deu na madrugada do dia 31 de março de 1964; na noite do dia seguinte, 01 de abril, houve o incêndio. Contra os estudantes da USP, os alunos da Mackenzie começaram a tacar ovos – depois, bombas, até que, finalmente, começaram os tiros. Em cima do telhado da Mackenzie, encontrava-se o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Em um documentário organizado por Renato Tapajós, depoimentos revelam que é falso afirmar que tudo se resumiu a um embate entre os estudantes das duas universidades. Havia um grupo de paramilitares na Mackenzie: o propósito era, definitivamente, destruir e ocupar o prédio de Filosofia da Universidade de São Paulo, um dos grandes centros de pensamento e resistência da época. O objetivo era produzir uma crise. Não por menos, pouco tempo depois, foi anunciado o famoso AI-5, conhecido pelo seu altíssimo teor de repressão, produtor de uma forte violência, com suas prisões, torturas e mortes, aos setores mais combativos e resistentes. A camiseta ensang